Pobreza rural: perda de identidade com a terra
1. Introdução
No Brasil é comum observar famílias vivendo no campo em estado de extrema pobreza enquanto possuem uma quantidade suficiente de terra para criarem meios de autossuficiência. Por outro lado, também é possível observar outras famílias ou comunidades que convivem com a terra de uma forma harmônica e produzem tudo o que necessitam para viverem. Qual a diferença entre as duas condições de vida no campo? O que levou à perda de identidade dos indivíduos com a terra levando tantas famílias à pobreza rural? Viver no campo seria sinônimo de pobreza?
Na tentativa de responder ou de pelo menos entender uma parte destes questionamentos, será feita uma comparação entre dois documentários: o primeiro apresenta uma situação onde o trabalhador rural ainda mantém uma sintonia com a terra como forma de sustento da família e entende a cidade como um sério problema para a sua subsistência. No segundo documentário, percebe-se que os sujeitos envolvidos não se relacionam com a terra como um meio de subsistência, delegando ao estado e ao setor privado as soluções necessárias.
Esta comparação será feita a partir de algumas das afirmações feitas pela física e ativista Vandana Shiva* onde analisa a existência de dois tipos de pobreza: (1) a pobreza percebida culturalmente e (2) a pobreza material (miséria).
"A pobreza percebida culturalmente não necessariamente é autêntica pobreza material: a economia de subsistência que satisfazem as necessidades básicas mediante o autoabastecimento não são pobres no sentido de estar privadas de algo. No entanto, a ideologia do desenvolvimento as declara tais porque não participam intensivamente na economia de mercado e não consomem mercadorias produzidas para o mercado e distribuídas através do mesmo, mesmo quando possam estar satisfazendo essas necessidades mediante mecanismos de autoabastecimnento. Se considera pobre às pessoas que comem milho (cultivado por mulheres) em vez dos alimentos preparados que são produzidos e distribuídos comercialmente e os vendem certas empresas dedicadas a negócios agrícolas que operam em todo o mundo. São consideradas pobres se vivem em casas construídas por elas com materiais naturais como o bambú e o barro ao invés de viver em casas de cimento. (…) Esta percepção cultural da prudente subsistência como pobreza legitimou o processo de desenvolvimento com um projeto para eliminar a pobreza. Como projeto culturalmente tendencioso destrói os estilos de vida saudáveis e sustentáveis e cria verdadeira pobreza material, ou miséria, ao desatender as necessidades de subsistência mesmo, por desviar recursos à produção de mercadorias. (…) Os processos inexoráveis de industrialização da agricultura provavelmente sejam mais culpáveis de que haja pessoas famintas que qualquer cruel e estranho capricho da natureza (SHIVA, 1995, p. 40 e 41 – grifos meus)."
Os lucros fluem para as empresas transnacionais que não têm nenhum interesse em alimentar famintos sem dinheiro (SHIVA, 1995, p. 41).
2. Análise comparativa: documentários
O primeiro documentário é "O Mundo Segundo a Monsanto" (ROBIN, 2008). O trecho escolhido para análise comparativa é sobre o avanço dos transgênicos no Paraguai e o depoimento de um agricultor que percebe o avanço dos transgênicos como prejudicial às suas plantações e a sua saúde; no entanto, entende que o campo (a terra) é o seu meio de subsistência (fartura de alimentos) e que sua ida para a cidade resultará na necessidade de ter acesso ao dinheiro ou sujeitar-se a comer restos de comida do lixo:
"No meu caso a minha família mora na cidade, mas eu não quero ir pra lá. Na cidade você tem que comprar tudo, até a comida. Aqui, seja o que for que plantarmos é nosso. Podemos comer o que quisermos, mas na cidade não é assim; se você não tiver dinheiro vai ter que procurar comida nas latas de lixo."
Este agricultor ilustra milhares de famílias camponesas que sobrevivem da agricultura familiar e que ainda entendem a terra como meio de subsistência representando a resistência à "ideologia de desenvolvimento**" que declara estas famílias como pobres (pobreza percebida culturalmente) obrigando-as a saírem do campo transformando-as em famílias miseráveis (pobreza material) .
O segundo documentário "A Estrada da Fome" (MEIRELLES, 2015) apresenta uma situação totalmente inversa. O trecho escolhido apresenta a miséria na cidade de Belágua no interior do estado do Maranhão e mais especificamente sobre uma família entrevistada pela jornalista Heleine Heringer. O contexto que pode ser visualizado no trecho do documentário é de um vilarejo com casas de palha e barro, uma família sem ter o que comer e um pai desempregado. A jornalista dá a entender que uma das soluções para o problema da família está na conquista de um emprego pelo pai.
Belágua tem 7 mil habitantes, a metade mora na zona rural. Segundo o IBGE, aqui em Belágua, cada família tem uma renda mensal de cerca de R$ 146,00; mas, isso é uma estatística, porque, o que a gente presencia é que em muitas dessas casas, muitas famílias não têm nem isso. Aqui também conhecemos Aldeíde, Zé Raimundo e os dois filhos, Ricardo de 2 anos e Amanda de 5 meses não param de chorar. O choro das crianças é que elas não têm nada para comer.
São mais ou menos cinco horas da tarde…
– Vocês almoçaram? – Não. (Aldeíde) – Tem leite pra ela? – Tem não. (Aldeíde) – Você dá mamá pra ela ainda? – Dô. (Aldeíde)
O leite de Aldeíde não é suficiente. Ela não se alimento como deveria. Zé Raimundo está desempregado. O sorriso é de nervoso sem saber o que fazer da vida.
– Aí pega uns peixinhos… Só que não é assim tão não. É só pra fazer mesmo o almoço deles aí, dos meninos. (Zé Raimundo)
Na geladeira só garrafas… Com água. A fome faz Aldeíde chorar de angústia.
Percebe-se claramente uma metamorfose completa de uma pobreza percebida culturalmente em pobreza material. Famílias continuam inertes, sem saber o que fazer, mesmo diante de terras disponíveis para o plantio, o que caracteriza uma perda de identidade com a terra. Não vislumbram possiblidades de autonomia alimentar por meio da agricultura. Mas, o que levou a esta perda de identidade? Os ascendentes destas famílias tinham uma outra cultura com respeito à terra? O então governador do estado do Maranhão, Flávio Dino, afirmou que há a necessidade de estimular a agricultura familiar nestas regiões:
"O governador do estado acredita que a solução está na retomada da Agricultura Familiar: – A agricultura familiar foi progressivamente perdendo a sua força. Não houve investimentos privados; por exemplo, industrialização do estado. A produção agrícola no Maranhão foi abandonada (MOTA, 2015)."
3. Os grandes latifundiários e a família Sarney
Ao falar do Maranhão, consequentemente há que mencionar o reinado da família Sarney neste estado, quebrado há pouco pelo novo governador do Partido Comunista do Brasil, já mencionado, Flávio Dino. Por coincidência ou não, Belágua se situa no estado do Maranhão, terras que já foram "administradas" por Sarney. Consequentemente, Maranhão é um dos estados mais dominados pelos grandes latifundiários, proprietários de grandes áreas de terra.
O estado do Maranhão possui uma das maiores concentrações de latifúndios do país (JORNAL DO BRASIL, 1993).
Todas as terras boas foram distribuídas entre os "comparsas" (interessados ligados ao poder) de Sarney sob ameaça de morte a pequenos proprietários como o conhecido na região, Vicente Hermínio de Souza Lima. Pelas palavras do ex-deputado estadual do Maranhão, Domingos de Freitas Diniz Neto (JORNAL DO BRASIL, 1993):
Hoje (1993) praticamente não há terras fora do patrimônio de grandes fazendeiros e grupos econômicos, e a culpa é de Sarney, que sempre incentivou a grilagem.
Sarney revogou em 1969 uma a lei antiga e estabelece uma nova que facilita as irregularidades realizadas, pois retira a necessidade de concorrência pública com ampla publicidade:
"As terras do estado que não tiverem destinação especial poderão ser alienadas ou concedidas em caráter oneroso mediante requerimento do interessado ou oferecimento em concorrência ou hasta pública."
No entanto, 12 anos depois quando se retorna à lei antiga, já era tarde:
"O que se constata, conforme documentação encaminhada a esta CPI, é a transferência ou venda de mais de 5 mil títulos de propriedade, num total que excede a 600 mil hectares, obedecendo à sistemática da discriminação administrativa prevista no mencionado dispositivo legal." "Aí já era tarde."
Todas as terras boas do Maranhão já estavam em poder dos interessados.
O problema do Brasil, exemplificado no estado do Maranhão e no município de Belágua, é claramente a necessidade de uma Reforma Agrária; no entanto, este problema vem desde a colonização onde todas as riquezas internas eram levadas para fora do país e ainda continuam sendo.
O pensamento colonizador das terras em busca de riquezas e consequente detrimento dos povos.
4. Novo governo e novas ações em Maranhão
Desde a revogação da lei por Sarney em 1969, já se passaram 48 anos de posse e exploração da maior parte das terras maranhenses pelos latifundiários.
Ações governamentais têm sido tomadas pelo novo governo desde a posse em 2015 e após a transmissão do documentário em março do mesmo ano. Ações no setor da agricultura, incluindo regularizações fundiárias, em diálogo com a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Maranhão (Fetraf-MA) têm sido feitas no sentido de "construir e aplicar políticas públicas que irão alavancar o desenvolvimento da agricultura no Maranhão" e beneficiar inicialmente "os 30 municípios maranhenses com menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM)". O primeiro município beneficiado foi Belágua (BRASIL-MA, 2015).
Estes projetos parecem objetivar a inclusão da agricultura familiar nas cadeias produtivas, acompanhando a mesma ideologia do agronegócio (produção e mais produção destinadas à exportação). Apesar disso, espera-se que por se tratar de ações focadas aos pequenos agricultores, estas produções também atendam às necessidades locais e busque o ideal do estabelecimento de sistemas agroecológicos de produção. Questões estas que ainda devem ser averiguadas.
Outra problematização verificada sobre o conceito de sustentabilidade é a noção que perdura nas ações governamentais de "entender as construções feitas a partir de materiais nativos como precários". Como solução, o governo maranhense implantou o projeto "Minha Casa, Meu Maranhão", onde foram substituídas 100 casas de taipa (como as que aparecem no documentário) por casas de alvenaria.
"Se considera pobre às pessoas que (…) vivem em casas construídas por elas com materiais naturais como o bambu e o barro ao invés de viver em casas de cimento. (…) Pelo contrário, (…) as moradias construídas com materiais locais são muito superiores, por adaptar-se melhor ao clima e à ecologia local. (SHIVA, 1995, p. 40)."
5. Considerações finais
Estas colocações não desmerecem as iniciativas do novo governo maranhense que são visivelmente um avanço extraordinário em relação aos governos anteriores e o início de um caminho para estabelecer uma identidade com a terra. Porém, o caminho ainda é longo para Belágua e para todo lugar onde há terra entender o que é pobreza e riqueza desde uma perspectiva que se considere outros valores.
Que a pobreza percebida culturalmente e/ou pobreza rural não seja vista necessariamente como pobreza, mas como uma forma de bem viver com a natureza. E que a pobreza material ou miséria não seja fruto da má compreensão do significado de pobreza que favorece as grandes empresas transnacionais e o surgimento de milhões de famintos pelo mundo que perderam a sua identidade com a terra.
* Vandana Shiva. Nascida em 5 de novembro de 1952 é uma estudiosa indiana, física, ecofeminista e ativista ambiental e antiglobalização. Ela é uma das líderes e membra da diretoria do Fórum Internacional sobre Globalização (WIKIPEDIA, s/d).
** Ideologia de desenvolvimento. Um claro exemplo desta ideologia é o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) que define a classe social e poder de compra da população em A, B1, B2, C1, C2 ou D-E. Os itens que devem ser avaliados nas famílias são baseados em uma sociedade urbana que consome os bens produzidos pelo capital. Exemplos: quantidade de banheiros, empregados domésticos, automóveis, microcomputador, lava-louça, geladeira, freezer e secadora de roupa. As outras avaliações são sobre o grau de instrução do chefe da família dentro do ensino formal e acesso aos serviços públicos como água encanada e rua pavimentada (ABEP, 2015). Desta forma, esta classificação econômica define se uma família é pobre ou não pelos bens materiais do capital, serviços públicos e instrução formal que possuem.
Referências bibliográficas
ABEP. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA. Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB). São Paulo: ABEP, 2015. Disponível em: <http://www.abep.org/criterio-brasil> Acesso em: 08/07/2017. PDF.
BRASIL-MA. Governo discute com trabalhadores projetos para agricultura familiar. Governo do Estado do Maranhão, Maranhão de Todos Nós: Agência de Notícias, 16/03/2015. Disponível em: <http://www.ma.gov.br/agenciadenoticias> Acesso em: 08/07/2017. PDF.
__________. Governo lança programa ‘Mais Produção’ em Belágua. Governo do Estado do Maranhão, Maranhão de Todos Nós: Agência de Notícias, 4/05/2015. Disponível em: <http://www.ma.gov.br/agenciadenoticias> Acesso em: 08/07/2017. PDF.
__________. Governo do Maranhão lança Programa ‘Mais Produção’. GovernoMA, 4 dez 2015. Disponível em: <https://youtu.be/thDBI2HK360> Acesso em: 08/07/2017. Link alternativo – completo.
__________. Informe Maranhão 24/05/2016. GovernoMA, 24 mai 2016. Disponível em: <https://youtu.be/Av8gw2u_ZS0> Acesso em: 08/07/2017. Link alternativo – trecho.
JORNAL DO BRASIL. Esquema Sarney: Sarney incentivou latifúndios no Maranhão. Santa Luzia, MA: Jornal do Brasil, 28/11/1993, p. 5. PDF.
MOTA, Daniel (produção). A Estrada da Fome. Repórter Record Investigação. Brasil: Rede Record de Televisão, 23 mar 2015. Disponível em: <https://youtu.be/Bkprnr2MJps> Acesso em: 08/07/2017. Trecho 1, Trecho 2.
ROBIN, Marie-Monique (direção). O Mundo Segundo a Monsanto. França, 2008. 108 min. Disponível em: <https://youtu.be/J22coHHotpw> Acesso em: 08/07/2017. Trecho 1, Trecho 2.
SHIVA, Vandana. El desarrollo, la ecología y la mujer: dos tipos de pobreza. p. 40-44. In: SHIVA, Vandana. Abrazar la vida: Mujer, ecología y desarrollo. Madrid: Horas y Horas, 1995. Original: Staying Alive: Women ecology and survival, 1988. PDF.
WIKIPEDIA. Vandana Shiva. s/d. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Vandana_Shiva> Acesso em: 08/07/2017. PDF.
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